"É preciso escutar quem está sofrendo e criar redes de apoio para que o tema seja enfrentado”

A psicóloga e psicanalista Anna Amélia de Faria defende uma escuta cuidadosa das vítimas do assédio e que as instituições refaçam pactos de trabalho reforçando a importância da linguagem, da ética e da coletividade

Psicóloga Anna Amélia de Faria reflete sobre assédio

As instituições precisam escutar as pessoas que trabalham em todas as instâncias, de forma cuidadosa e capaz de desconstruir questões estruturais da sociedade, como o machismo, o racismo, o capacitismo, a homofobia e tantas outras formas de diminuição do outro. A psicóloga e psicanalista Anna Amélia de Faria defende essa abordagem na prevenção e no enfrentamento do assédio moral e sexual. Para a psicóloga, que é mestre em Comunicação pela Universidade de Brasília (UnB) e professora da graduação e do mestrado em Psicologia na Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública (EBMSP), é imprescindível valorizar a palavra se a intenção é transformar relações de trabalho. Nesta entrevista, Anna Amélia de Faria sugere a criação de redes dentro das instituições, apoiadas pela ética e pela equidade, e que essas redes possam estabelecer ambientes livres de assédio.

TRE-BA – Como identificar situações que configuram assédio daquelas que podem ser consideradas formas mais enfáticas de comunicação no trabalho?

Anna Amélia de Faria – Em primeiro lugar, é preciso escutar quem está sofrendo. Mas, o benefício da dúvida muitas vezes recai no apagamento de reconhecer quem sofre. Isso de “mimimi” é sempre um grupo desmerecendo o mal-estar do outro a partir de certas compreensões do que é o outro historicamente. Há uma espécie de correlação de forças, quem pode falar do outro e quem vai ter a vida diminuída por quem pode falar mais. Tem um jogo aí de poder. As estatísticas mostram que o homem mata mais, mas quem é “chiliquenta”? A mulher. O homem grita, só que ele tem razão, e mulher tem o quê? TPM. São formas discursivas de diminuir o espaço de reconhecimento e de legitimidade de uma assertiva. A mulher ou uma mulher trans ou uma pessoa gay afeminada, todos os que entram no território do feminino são sempre diminuídos. É “o viadinho”, “a mulherzinha”, pessoas que não estão nos grupos legitimados. O filósofo Gilles Deleuze diz que não existem direitos humanos, que isso é muito vago, uma metafísica. O que existe é jurisprudência. E na jurisprudência, inclusive, há um termo, que é a equidade, para tratar diferente o que não é igual. Essa discussão fica muito em voga agora, quem é que identifica, quem é que sofre. Se alguém sofre, você escuta. Por que duvidar? A pessoa que fala “eu sofri uma injúria” merece ouvir de volta “sim, fale mais sobre isso”.

TRE-BA – Como, além da escuta, as instituições podem incentivar a fala das vítimas, considerando que, historicamente, grupos mais vulneráveis acabam aceitando o assédio para manter o emprego, por exemplo?

Anna Amélia de Faria – Há uma espécie de naturalização que determina o seguinte: para um grupo, é legítimo ser agressivo e, para outro grupo, não. A partir de uma pequena diferença entre grupos se justifica o privilégio de quem pode fazer tudo ou quase tudo. Isso fica ainda mais evidente quando a gente percebe o apagamento do território em que o grupo desprivilegiado tem o direito de existir. Historicamente, a nossa sociedade é constituída em cima de uma base violenta, então o grupo que tem poder de maior letalidade, de maior violência, vem ganhando. Por isso, a jurisprudência, para dizer o que não está certo. Se a gente for pensar na história dos grupos, quem sustenta privilégios é quem fica submetido pelos privilegiados a esse apagamento, ao silêncio. Agora, esses grupos sempre resistem e se a gente pensar na categoria complexa “mulher”, é quem faz o mundo. Dentro dos territórios políticos, já existe uma determinação para a mulher se tornar chefe da família, porque ela não se evade, tem uma manutenção de cuidado, mesmo com todas as durezas. A gente vê a desproporção na representatividade, na tessitura socioeconômica, na organização política, e essas coisas não refletem a força motora sendo representada nesses espaços de administração e de divisão de riquezas. A gente não vê isso, mas a gente sabe quem faz o Brasil e a cultura brasileira e o país hoje está em uma situação muito vulnerável, com mais da metade da população em risco alimentar, sofrendo com a pandemia, com a situação sanitária. Ainda assim, há uma espécie de afeto, uma tecnologia de manutenção de vida. Para incentivar a fala de quem está sofrendo, as instituições podem oferecer espaços de ouvidoria e estabelecer políticas que não admitam qualquer tipo de assédio. Isso precisa ficar muito bem acordado entre todos os que integram os espaços institucionais. Da mesma forma, é necessário criar dispositivos para inibir o assédio, responsabilizando as pessoas. Tudo isso acaba colaborando para criar uma outra realidade de trabalho, mais acolhedora e segura.

TRE-BA – Para responsabilizar o assediador, são necessárias denúncias e provas. Como lidar com a exposição e uma possível revitimização?

Anna Amélia de Faria – Tem uma complexidade na naturalização de mando para um grupo e no desdobramento disso em uma compreensão de que os grupos vitimizados se sentem intimidados, ameaçados e desconfortáveis. Só que isso repercute em uma diminuição de vida, como se a vida valesse menos. Como colaborar? Aí entra a tessitura democrática e complexa da sociedade. Quem colabora para mudar esse estado de coisas? As instituições, criando outras narrativas, mostrando que todos podem, que todo mundo vale. Dentro de uma organização mais ética, não vale tudo, mas valem todes, todas e todos. E como é que faz isso? Transmitindo essas narrativas e, com elas, mensagens e valores. É um compromisso de todo mundo e, mais ainda, de quem tem uma informação valorada, de quem é mais escutado, quem tem a mensagem mais propagada. Essa é uma responsabilidade e aí entra como cada um, ao escutar, ao reproduzir e, ao validar, se responsabiliza. Porque, o que a gente também vem escutando muito é que a omissão é um lugar. Vivemos em um país pouco escolarizado, com uma crítica precária por conta da decodificação de informação. Às vezes, só por haver uma informação em determinado órgão para um tipo de receptor, isso já aufere uma verdade intrínseca, por conta de uma fragilidade crítica, analítica. Como diz na Bahia, a pessoa “come o Reggae”, porque aquela informação veio de não sei onde. E isso hoje é completamente comum, cada vez mais a gente está habituado com as fake news, que têm impacto nocivo e que diminuem a vida.

TRE-BA – Estruturalmente, a sociedade brasileira ainda lida de forma equivocada com hierarquias. Não raro, encontramos pessoas em altos cargos com posturas condenáveis e se justificando pelos cargos que ocupam. Como isso interfere nas questões de assédio?

Anna Amélia de Faria – Esse éo famoso “olha com quem você está falando”. Mas isso, a antropologia e a sociologia explicam. Essa forma de ser vem antes das relações de trabalho. Quem ocupa o poder, já chega em um território mapeado pelo poder. Quem pode e quem não pode, “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. A gente vê nessas organizações as mesmas figuras ocupando os mesmos lugares e com o mesmo repertório. Isso é secular, nosso país é muito tradicional. A tradução, a tradição e a traição do Brasil manejam, se alimentam e se nutrem desses lugares. O lugar vem antes, o lugar precede o modo de exercer o poder, e isso vai se fazer em toda a malha do estado, das organizações, nas funções, na maneira de designar, de reconhecer ou não determinados trabalhos, o prestígio que agrega ou não para determinados corpos.

TRE-BA – Como criar ambientes de trabalhos saudáveis, democráticos e plurais?

Anna Amélia Faria – Essa é uma resposta semelhante à primeira pergunta desta entrevista, sobreidentificação. Identificação e desconstrução são verso e reverso, cara e coroa, um lado e outro. Se você identifica, é porque já tem repertório para desconstruir. Então, como identificar? Problematizando socialmente lugares que sempre foram estáveis. É preciso desestabilizar esses lugares para poder organizar de outra maneira, mais vivificante e, de fato, mais democrática.

TRE-BA – E isso é tarefa de quem?

Anna Amélia Faria – Isso é tarefa de todos, e pode ser amplificada pelos meios de comunicação. A gente é um bicho da comunicação, a nossa natureza, o nosso grau zero é a comunicação. A gente aprende o nome da gente pelo outro, aprende a falar do sentimento usando o vocabulário que a língua que a gente habita nos propicia. Então, não tem fora da linguagem, é dentro da linguagem que essa organização, reorganização, detecção e prospecção vão acontecer.

TRE-BA – De que forma é possível pensar no acolhimento para pessoas que sofreram assédio em experiências pregressas e trazem essas vivências para os novos momentos de suas vidas profissionais?

Anna Amélia Faria – O brasileiro, em geral, é intimidado. Para lidar com isso, dentro dessas possibilidades de linguagem e de diálogo, é preciso trazer uma espécie de recobrimento ético. Se a palavra reorganiza um estado de coisas dentro de uma responsabilidade ética, temos que refazer esses pactos, refazer lugares, e eu acho que, às vezes, isso deve ser feito junto com dimensões morais, de jurisprudência. Agora, isso é pensado na especificidade da dor singular, porque estamos falando de gente traumatizada, de acontecimentos que tiveram impacto em suas próprias vidas, em vários sintomas de sofrimento e de adoecimento psíquico. Em dimensões estatísticas, o Brasil é o primeiro ou o segundo país mais depressivo e ansioso do mundo. Estamos falando da realidade de um país completamente adoecido. Mas o sofrimento, ele é muito democrático. Aquele que faz sofrer também está sofrendo em alguma medida. Tem uma espécie de rebaixamento amoroso. Aquela pessoa que se utiliza só do poder dessa maneira estrutural, tem alguma coisa nela que já está meio “sambada”. Porque a troca é uma alegria. Se a alegria fica determinada exclusivamente por um poder, isso gera uma paranoia no poderoso. Porque o poderoso sabe que ele é temido, mas não é amado. Amor é outra coisa, afeto é outra coisa. Tanto que, o que a gente vê, costumeiramente, é a solidão do poderoso. Tem prestígio enquanto está em lugar de poder e da diminuição dos corpos. Na hora que sai, é abandono e desamparo. O inflexível, a própria dureza consome. Então, a gente está falando também de pessoas muito sofridas e adoecidas que, às vezes, não escolhem ser, elas só reproduzem. Tanto que falam em masculinidade tóxica, aquele que faz, também sofre de uma espécie de rigidez de papéis. Você é isso? Então, represente isso sempre, não chore.

TRE-BA – É possível afirmar que quem está assediando também pode ter sido vítima de assédio em algum momento?

Anna Amélia de Faria – Lógico. Porque, se a gente é um bicho discursivo, essa discursividade nos toma, ou seja, a gente adoece e se resolve na linguagem.  A pessoa que sofreu o assédio, aquilo faz parte da existência dela e funciona como uma espécie de moeda de troca simbólica. Mas, nem por isso, o assédio vale. Criar infortúnio para outra pessoa por um mal-estar que alguém que perpetra já sofreu, não resulta em benefício para ninguém. Uma dimensão de limite legal dos espaços compartilháveis é que tem coisa que não vale. As instituições têm que se organizar para coibir o que cause dano, sofrimento e amargura. É preciso garantir meios que tenham essa competência, de impedir assédio e outros tipos de violência nas relações de trabalho.

TRE-BA – Mas ainda requer coragem para deixar o lado mais óbvio desse sofrimento, que é o de ser assediado, não?

Anna Amélia de Faria – Coragem e rede. Porque a coragem faz essa coisa do sujeito empresa de si mesmo, “ah, você é responsável por tudo”. Calma, porque aí, mais uma vez, a gente culpabiliza quem está em situação de desfavorecimento. Temos que garantir redes de apoio não só no âmbito imediato, como aquelas mediadas por uma legitimidade que crie condições para que a palavra possa transitar. Porque senão fica assim: a pessoa e a amiga, a pessoa e a família, só que muitas vezes quando essa rede está enfraquecida o que a gente vê é um sentimento solitário, uma espécie de colapso em si mesmo. E isso é muito triste, porque é a desconfiança de si, é a autoculpabilização, é o trauma, a vergonha, e aí desemboca para um adoecimento, para o desespero, para a falta de sentido. Somos seres de relação. O “eu” é uma palavra que não existe em si, a criança que nasce, ela aprende a falar “eu” e demora. O eu é um outro, sempre. Para você dizer, “eu valho”, você tem que estar em um campo em que a sua validade seja reconhecida.

TRE-BA – Casos de assédio sexual são ainda mais complexos de lidar em  ambiente de trabalho. O que pode ser destacado nesse enfrentamento?

Anna Amélia de Faria –  Acho que um pouco detudo o que já foi dito: escuta, acolhimento, redes e jurisprudência. Aqui, volto mais uma vez ao início desta entrevista. Se acontece alguma coisa, que esse acontecimento possa ser levado para outra instância que legitime o dano e crie uma condição de retratação, de acesso aos dispositivos legais. E, se não houver nessa rede, que haja uma parceria que legalize e crie a dimensão de responsabilização para o agente, ou ficaremos naquela coisa de culpar a vítima.

TRE-BA – O ideal seria criar mecanismos para evitar que essas situações acontecessem.

Anna Amélia de Faria – Sim, esse é o ideal. Lembro que, quando morei em Brasília, em muito pouco tempo, os motoristas começaram a parar na faixa de pedestre. Foi de uma hora para outra. O que aconteceu? Multa. A jurisprudência chegou. Se você não pode fazer porque será responsabilizado, você deixa de fazer. A lei não é para todos? Então, equidade. Esse universo só funciona dentro de categorias discretas que sejam contempladas nesse meio complexo. O perigo do simples é abdicar e deixar sofrendo quem historicamente já sofre. Não dá para abdicar. Ninguém larga a mão de ninguém.

 

CB

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