"Justiça Eleitoral tem papel fundamental no direito dos povos indígenas", afirma pesquisador
Para o cientista político Leonardo Soares (UFPA), incentivo de partidos políticos e revisões nas leis eleitorais podem ampliar representatividade de povos nativos no poder público

Desde que a Justiça Eleitoral passou a solicitar que os políticos declarem cor/raça no registro de candidaturas, em 2016, vem sendo possível mensurar a participação de diversos grupos no processo eleitoral. Com esse marcador, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) computou um aumento de 26,8% no número de candidaturas indígenas no Brasil entre 2016 e 2020. Na Bahia, o crescimento foi de 54%. Nas Eleições Municipais de 2020, o total de eleitos foi de 6%, no país, e 11,2%, no estado.
No caso destas candidaturas, para o cientista político Leonardo Soares, professor da Universidade Federal do Pará (UFPA), há obstáculos de, pelo menos, três ordens. O primeiro deles seria o desafio sociodemográfico, uma vez que a população indígena no Brasil é minoritária (0,47% do total), distribuída em um território continental e fragmentada em diversas etnias.
O professor, que pesquisa democracia participativa, movimentos sociais e políticas de reconhecimento territorial indígena, também aponta distinção entre indígenas que estão mais próximos das cidades daqueles aldeados. Enquanto os primeiros têm mais contato com a cultura eleitoral, os outros, às vezes, não falam português nem dominam as regras políticas da sociedade circundante.
O segundo desafio, conforme Leonardo Soares, diz respeito ao sistema eleitoral do Brasil, que combina lista aberta com voto nominal. Ele argumenta que, mesmo as campanhas que se concentram em um candidato, têm dificuldade de atingir o coeficiente eleitoral. Esse contexto é contornável em cidades muito pequenas ou quando a população indígena é considerável, aponta o pesquisador. “Uma alternativa, pelo legislativo, seria reduzir o coeficiente eleitoral para partidos com uma cota mínima de indígenas", defende.
O especialista reconhece que o problema é complexo e que as soluções para resolvê-lo também são. A proposta do coeficiente, embora teórica, estabeleceria que essa margem de votos válidos divididos pelo número de cadeiras fosse reduzida para partidos que apresentassem quantidade mínima de candidaturas indígenas.
Para Soares, é fundamental salientar que “sistemas eleitorais não são perfeitos, mas alteráveis, e isso depende somente do entendimento político da sociedade em determinado momento”. O importante, observa o professor, é buscar soluções que não sejam nem automáticas nem simplórias. Em vez disso, desenvolver mecanismos para que haja aumento da representação de indígenas e que envolvam desde o recrutamento dos partidos a iniciativas educacionais da Justiça Eleitoral.
Por dentro das leis
Uma terceira ordem de desafios, para o professor Leonardo Soares, seria a burocracia partidária. São os partidos que controlam os recursos que vão para as candidaturas. “A maioria não costuma investir em candidatos que, teoricamente, vão atrair poucos votos”, afirma o professor. Para ele, isso também poderia ser driblado com mudança cultural e, consequentemente, compreensão da necessidade do lançamento de candidaturas indígenas, como já vem acontecendo com negros e mulheres. Segundo ele, as Casas Legislativas também poderiam criar regras para demandar dos partidos um olhar mais específico sobre as candidaturas indígenas.
O trabalho do TSE e dos Regionais Eleitorais é apontado por Leonardo Soares como excelente no que se refere a disponibilizar urnas eletrônicas nas aldeias, enfrentando dificuldades para fazer esse instrumento de participação cidadã chegar aos lugares mais remotos do país.
“A Justiça Eleitoral no Brasil é uma instituição reconhecida por seu padrão de qualidade e tem papel fundamental no direito dos povos indígenas”, afirma o professor, acrescentando que uma forma de aprimorar esse trabalho seria qualificar organizações indígenas para maior participação eleitoral. “Digo no sentido pedagógico mesmo. Há uma série de meandros das leis eleitorais e partidárias que muitas lideranças ainda não conhecem”.
Protagonismo
De acordo com o pesquisador, para que essas transformações aconteçam, é preciso que a sociedade, nos mais diversos segmentos, compreenda os povos indígenas para além de estereótipos.
“Você pode passar a vida inteira, no Brasil, vivendo em grandes cidades sem encontrar um indígena ou só cruzando na rua, de longe, e pronto. Isso porque boa parte desses povos ocupa os seus territórios. A falta de conhecimento vira terreno fértil para cultuar o que chamo de Indígena, assim, com ‘i’ maiúsculo, figura idealizada, que não pode falar português, usar dinheiro, vestir roupas ou ter celular”, analisa o cientista político.
Essa visão idealizada, segundo Soares, aniquila o que ele chama de indígena com “i” minúsculo, que é o da realidade concreta, multifacetada, complexa, híbrida e em permanente diálogo com a sociedade circundante. “É alguém que frequenta a universidade, que ocupa lugar de saber, que participa da política, mas que também está voltado para suas terras tradicionais, línguas e culturas”.
Identidade
A possibilidade de registrar a candidatura se identificando como indígena nem sempre se reflete em uma marcação correspondente no site do TSE. Tanto em 2016 quanto em 2020, foi possível encontrar candidatos e candidatas que são conhecidas lideranças de povos originários, mas que se identificaram como pretos ou pardos em seus registros.
O professor Leonardo Soares afirma que, para entender a razão disso, seriam necessárias pesquisas qualitativas com maior profundidade, mas ele vê algumas hipóteses. Uma delas seria “observar a autoidentificação como um fenômeno complexo, que envolve muitas variáveis, sobretudo para populações com séculos de opressão colonial”.
Assumir-se indígena em uma disputa eleitoral, para o pesquisador, é algo que pode passar por outros elementos que não apenas o pertencimento a uma etnia. “Existe uma série de outras situações que a pessoa pode ter como referência. Por exemplo, um dos pais pode ser negro e o candidato se identificar assim”. Para o professor, essa questão traz reflexões sobre o incentivo dos partidos para a autodeclaração de candidatos e candidatas.
De um modo geral, observa Leonardo Soares, a organização dos povos indígenas está em um crescente contínuo desde a década de 1970. Há pelo menos 50 anos, representantes de comunidades nativas do país têm se articulado e traçado estratégias em uma mobilização que, para ele, veio para ficar.
“Talvez um dos fatos mais relevantes da campanha de 2018 tenha sido a candidatura de Sônia Guajajara, representante da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil à vice-presidência da República por uma chapa dentro de um partido urbano (Psol)”, observa. Essa candidatura, acredita o professor, “marca os povos indígenas saindo de uma situação de quase dizimação nos últimos séculos para um protagonismo político que eu espero que se fortaleça cada vez mais”.
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